Hospital no Rio de Janeiro. — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
O Brasil passa por uma transição que deve levar a uma mudança na principal causa de morte nas próximas décadas. Hoje, as doenças cardiovasculares são as que mais matam no país, e no mundo. Aos poucos, porém, elas têm sido desbancadas pelo câncer numa tendência que já se consolida em países de renda alta e tem avançado em nações como a brasileira.
Segundo um levantamento feito pelo GLOBO com base nos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, em 836 cidades do país o câncer já matou tanto ou mais que doenças cardíacas em 2024, o que representa 15% de todos os 5.570 municípios do Brasil. Em 606 delas (10,9%), as mortes oncológicas já lideram a lista.
"A tendência é essa. Há muitas diferenças epidemiológicas na nossa população, mas até 2035 devemos ter essa transição numa parte significativa do país, começando pelos grandes centros urbanos. Reflete algo que já está acontecendo em muitos países de alta renda, em especial os europeus" — diz Carlos Gil, presidente do Instituto Oncoclínicas, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
Em lugares como Canadá, Austrália, Dinamarca e Uruguai, o câncer já ultrapassou por completo as doenças cardiovasculares como principal causa de morte nas últimas duas décadas, segundo informações da base de dados de mortalidade da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Considerando os óbitos prematuros, que ocorrem entre 30 e 70 anos, um estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, da sigla em inglês), braço oncológico da OMS, concluiu que 57 países já tinham os tumores como a principal causa de morte em 2019, mudança que deve ocorrer na maioria das nações ao longo deste século.
No Brasil, em 2024, foram registradas ao todo 238.477 mortes por câncer e 365.772 por doenças cardíacas. Os dados são parciais, ou seja, podem aumentar. Das 606 cidades em que já se morreu mais por câncer, 72% ficam nas regiões Sudeste e Sul. Entre os estados, nenhum teve mais óbitos por câncer.
Distrito Federal e Rio Grande do Sul, porém, foram os que chegaram mais perto, com as mortes cardíacas ficando menos de 20% acima das causadas por tumores. Na outra ponta, no Piauí, Maranhão e Alagoas, os óbitos por problemas no coração foram mais que o dobro dos registrados por câncer.
"O Brasil está mudando e isso está muito relacionado ao maior controle das doenças cardíacas, que causava muito o que chamamos de morte prematura. Mas a transição é desigual nas regiões, porque Norte e Nordeste ainda não conseguirem esse melhor controle como Sul e Sudeste" — afirma Maria Paula Curado, chefe do Grupo de Epidemiologia e Estatística em Câncer (GEECAN) do Centro Internacional de Pesquisa (CIPE) do A.C. Camargo Cancer Center e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Um estudo publicado no The Lancet Regional Health no final do ano passado por um grupo de pesquisadores brasileiros, entre eles Maria Paula, já havia confirmado essa tendência ao apontar que a mortalidade cardíaca prematura caiu 29% entre 2000 e 2019, e a oncológica subiu 9% nesse mesmo período.
Patrícia Marcatti, vice-presidente do grupo de estudos de Cardio-oncologia da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), explica que as doenças do coração historicamente matam mais devido ao amplo conjunto de fatores de risco que vão desde pressão, glicose e colesterol altos até sedentarismo, obesidade, tabagismo, álcool, má alimentação e excesso de estresse.
"Além disso, muitas vezes os sintomas não são tão claros quanto uma dor no peito. Principalmente mulheres de meia-idade podem apresentar sinais atípicos, como dor de dente ao subir uma escada, uma sudorese. Essa sintomatologia muito variada é um desafio que pode levar o paciente a não buscar ajuda, e o médico a demorar a diagnosticar" — complementa.
Embora o número de óbitos cardíacos ainda seja elevado, ela conta que a mortalidade vem caindo devido às novas ferramentas para lidar com as doenças, como medicamentos para hipertensão arterial, stents para melhorar o fluxo sanguíneo e tratar problemas como infarto, novas e melhores cirurgias, entre muitos outros tratamentos inovadores.
Evelyn Santos, gerente de Investimento e Impacto Social da organização de saúde pública Umane, lembra ainda que outro avanço importante foi a expansão da cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, “que responde por um cuidado qualificado e de proximidade com a população”, o que auxilia diretamente no controle de doenças crônicas como as do coração.
Mas não é apenas isso que justifica a transição epidemiológica que o país e o mundo vivem. Os especialistas contam que, no outro lado, embora existam também avanços no tratamento do câncer, há um aumento no número de casos, especialmente entre jovens, e muitas vezes um diagnóstico já em fase avançada ou um tempo longo entre a identificação da doença e o início do tratamento, fatores que contribuem para uma maior mortalidade.
"Vemos mais casos por conta de fatores de risco como tabagismo, consumo de álcool e principalmente obesidade, dietas com muitos processados. Agora, também sabemos que há um grande papel da poluição ambiental em alguns tipos de câncer de pulmão. Todos esses aspectos da vida contemporânea levam a esse aumento" — diz Gil.
Além disso, o envelhecimento populacional, muito ligado ao melhor controle das doenças cardíacas, também eleva a incidência do câncer, pois quanto mais tempo a pessoa vive, maior a chance de ocorrer uma mutação que causa o tumor maligno. A Sociedade Americana do Câncer, por exemplo, estima que 1 em cada 2 homens e 1 em cada 3 mulheres serão diagnosticados ao longo da vida.
Maria Paula, do A.C. Camargo, explica que, se o acesso ao tratamento fosse rápido e eficiente, o país teria um desfecho melhor na mortalidade. Porém, muitos pacientes demoram a dar início às terapias, cenário mais alarmante no Sistema Único de Saúde (SUS), mas também presente na saúde suplementar:
"Temos locais no Brasil em que o paciente espera 100, 150 dias. Aquele tumor que era pequeno fica grande, e as chances de cura diminuem. A lei que determina um prazo (60 dias) precisaria ser cumprida, mas na prática não é efetiva".
Por fim, Patrícia, cardio-oncologista, acredita que outro fator que influencia essa maior mortalidade oncológica é a melhora dos métodos de diagnóstico. Para ela, há um número hoje de mortes por câncer que no passado não eram registradas pelos pacientes não saberem que tinham a doença.
Em relação à prevenção, ela lembra que a boa notícia é que muitas medidas previnem tanto as doenças cardíacas, como o câncer, como o combate à obesidade, ao sedentarismo, ao tabagismo, ao excesso de álcool e à má alimentação:
"Hoje colocamos muito em foco o exercício físico. Uma caminhada na rotina já consegue impactar claramente no prognóstico. O melhor controle do peso também tem um impacto significativo. E ter pequenos momentos de descompressão no dia é importante para melhorarmos os níveis de estresse, que é altamente inflamatório para o organismo. Esses fatores de risco são modificáveis e podem mudar a história da doença para muitos pacientes"- concluiu.